sábado, 8 de novembro de 2008

Heitor e Clarice.


Desceu as escadas correndo, seu vestido enlameado na barra fazia tropeçar e o sangue escorria lentamente. Viu a porta entreaberta, ela parecia o trêmulo breu que traria a liberdade, quanto desejara sair daquela casa. Seus dias sombrios começaram quando adentrara aquela porta, na época bem pintada e destrancada, e nunca mais havia posto os pés para fora. É lacônico e insipiente começar uma história assim, contar de como sonhos foram minimizados e uma vida desfeita. Eu preferia saber dizer algo belo e sutil para fazer com que você, querido leitor, se sentisse atraído pelo tom lúdico da história. Mas é falso. A verdade é que desde o início não se passa de um conto de como uma menina, angustiada por ver seus sonhos se esvaindo, perdeu a vida e a felicidade, tornou-se transeunte de si mesma. Quando Clarice saiu de casa, com sua pequena mala e o casaco enrolado na cintura, não imaginava que o que chamava tantas e tantas vezes de inferno era apenas o purgatório. Brigas familiares eram comuns, e para quem não são?, mas o que se passava na cabeça dela era uma forma de fugir, de se esvair, planejava agüentar todos os perigos externos por um momento de paz consigo mesma. Na verdade, não culpemos a família de nada... Era sua vontade de encontrar um caminho, algo para servir e por toda aquela energia que transbordava de seu pálido seio túrgido.
Logo no início do verão o conheceu, seu nome era Heitor e tinha dos sorrisos mais belos e gentis já vistos. Trabalhava em um escritório de contabilidade, mas sua verdadeira vocação era a música. Criado no conservatório pelo avô, que era zelador do local, aprendeu desde rebento o amor pelos instrumentos, mas em especial piano, do qual dedicava todas suas horas ociosas, abdicando até de comer e dormir algumas horas a mais. Eles se conheceram em um concerto no Municipal; ela vestia uma túnica branca, ele um terno discreto que demonstrava a corrente de seu arcaico relógio, prazeres escondidos. Trocaram olhares discretos e na saída começou uma tórrida, e corriqueira, chuva. Ela se apoiou nas escadas, os relâmpagos lhe causavam tonteiras, ele a amparou e soprou-lhe o rosto afastando seus cabelos. Ficaram parados se olhando, se vissem a cena entenderiam como é difícil descrever. Ele a amou como nunca naquele momento, sua blusa delicadamente abriu para que lhe entrasse ar, pode-se ver o colo e o pescoço, pareciam nuvens simétricas.
Começaram a sair, os dias foram passando, mas só conversavam, se olhavam e enredavam seus pés, sem nem ao menos trocarem beijos ou juras. Um dia ele a chamou para ir passar o fim de semana em sua casa, ela feliz fez uma pequena mala e enlaçou o moletom na cintura estreita, ela foi. Quando Heitor tinha apenas vinte anos seu avô teve morte súbita, no chão da cozinha. O recém homem sentiu-se menino, chorou horas seguidas, tentou suicídio mais algumas e passou as restantes tocando uma mesma sinfonia. Cresceu sem amigos, seu avô era seu modelo e herói, talvez por isso tenha se tornado um homem tão exemplar e disciplinado. Os dois moravam em uma pequena casa que se localizava em um sítio distante do centro, com papoulas, plantações, vinhos caros e cozinha de azulejo. Clarice sempre sonhou com isso, com o refugio do campo, com o contraste da louca cidade, em busca de encontrar-se com todos seus sentimentos perdidos no meio de crises e negligências pessoais. Não teve duvidas de que com ele ela seria feliz, plena, uma mulher do campo a se dedicar ao seu amor música, elegante e rústico.
Ao chegarem, ela subiu para o quarto principal carregada por ele, que docemente a deitou em seu leito e despiu os pés da doce mulher que já ofegante beijava-lhe as mãos. Uma música começou a tocar na cabeça de Heitor, parecia a sinfonia que ele sempre tentara compor, mas nunca conseguira, agora plasmavasse. Com o movimento uniforme de seus corpos, as palavras em sussurros e as balbucias entre juras: ele alcançara seu êxtase, ela seu amor. Ficaram se olhando sem dizer nada o dia todo, por dias. Ela deixava escapar risos escandalosos, ele espalmava seu corpo com monótona avidez, era o inicio da ruína de ambos. Depois de alguns meses, ele parou de trabalhar. Era sofrível demais ir para um cubículo enquanto sua amada deleitavasse com a beleza do mundo, oferecida em uma natureza de pincel. Ela concordou alegre com a idéia de não se trabalhar, viveriam do amor que tinham, das papoulas, dos vinhos, do êxtase que era ver a porta da casa descascando, da ânsia que era escutar todas as melodias deitada no piano de cauda.
Mas então os anos vieram, o inverno chegou e uma saudade crescente dos metrôs e da chuva entupindo bueiros começou a deixar Clarice descontente. O afeto já não era tão verdadeiro, o vinho acabara e as melodias se tornaram entediantes – nem preciso comentar sobre o êxtase de ver a porta descascando. Tomou fôlego em um dia quente, saltou da cama e desceu as escadas. Vestia uma bela camisola pérola e tinha os pés descalços. Seus cabelos eram claros, mel ou beges, nem sei. Seu sorriso sempre foi triste, suas mãos finas e o olhar de pena, de quem pede pena. Disse que queria ir-se, que cansara da vida, que ele não tinha ambições e que ela ainda tinha sonhos. Ele riu, riu tão desconcertadamente que deu medo. Parecia o riso quando viu seu avô estirado, segui de um choro digno de medo, medo do que um homem que chora tão descontroladamente pode fazer quando ele cessa. Ele parou, a olhou. Fitou o bico de seu seio que estava a mostra e fez vir em sua mente todos os momentos de felicidade, gemeu pensando em cada delírio de libido e tremeu ao constatar o calafrio que só apaixonados sentem. Correu para a porta, quebrou-lhe a fechadura, gritou duas frases desconexas e mandou-a sentar.
Heitor começou a querer dizer coisas, mas sua mente não estava suficientemente clara para isso. Ele queria explicar como era apegado às coisas, tanto matérias quanto subjetivas, e não podia abdicar delas sem que antes lutasse. Dizia que seus pais há muito o abandonaram, na verdade nunca o quiseram, mas o sustentavam como um fardo. Até um dia que, na escolinha pitoresca, o pequenino Hector juntou as tesourinhas de todos os coleguinhas e perfurou toda a perna da professora, ela negava o suco de uva a ele todas as tardes. Era o pretexto perfeito para o abandono, e ao seu pobre avô ficara relegado. Não que este fosse um homem ruim, tinha coração maior que o mundo, mas não sabia nada da arte de educar. Depois de algumas situações no primário, o patriarca resolveu tirar-lhe da convivência de outras crianças e a ele foi negada a educação. Já nos seus dezessete anos teve uma namorada. Ela freqüentava um grupo de reabilitação perto do mercado de frutas, ele começou a traficar ópio para ela. Logo estavam inebriados por uma tortuosa paixão que lhe levava ao céu e inferno em segundos, era um pêndulo. Como ele nunca usara nenhum tipo de drogas, era difícil agüentar o ritmo inconstante de Miucha - assim se chamava a louca, e só agüentava a situação por amor e um pouco de dó. Mas os pais da jovem, ao saberem todo o romancete, proibiram de vê-lo e instauraram o caos na vida do rapaz que desde então nunca convivera com ninguém. Não houve duvidas, em nome do amor, Heitor esperou cuidadosamente sua amada sair e incendiou a casa com os pais juntos, julgava te-la para sempre. O resultado foi estrondoso, Miucha queimou o rosto em loucura e a família resolveu interna-la em um manicômio no interior de Minas. Depois disso veio a morte de seu avô, a do vizinho e da senhora do leite, todas de causa natural, para todos, ele tentara montar uma sinfonia em agradecimento, só para o principal não conseguira. Até hoje há dúvidas de porque tudo isso foi contado naquele instante, acho que ele queria que ela soubesse por que todos aqueles fatos iriam suceder, afinal, ele a amava.
Ela, em meio a soluços, contou que sua vida era mais simples, porém mais angustiada, talvez... Viveu em uma família patriarcal, de comerciantes que enjaulavam suas pequenas filhas para não conviverem com a atroz realidade. Um dia, quando ela ainda era criança, estava debruçada na janela cantando quando viu a vizinha, cinco anos mais velha, se jogar e cair nos fincos do jardim. Desde então tentara reproduzir morte semelhante em glamour, pois pela primeira vez uma menina naquele bairro era assunto, e não por seus sapatos ou pelo feito de seus pais. Mas ela se dizia fraca, impotente em sua sandice, jamais faria isso. Nunca tivera nenhum namorado, transara com três homens, ambos trinta anos mais velhos, e caiu em depressão por cinco vezes. Quanto a Heitor, o conheceu de forma despretensiosa, e explicava que queria amá-lo, mas que isso seria algo falso, algo errado, porque desejou estar naquela casa em cada momento que estivera. Ele mandou calar, sentou-se no piano e mandou que ela enchesse a banheira, tomariam um último banho juntos e a deixaria ir.
Quando ela desceu para avisar que o banho estava pronto, Heitor estava todo mutilado nos membros e grunhia por seu amor, quebrara os móveis e agarrando sua mão falava para ficar. Ambos já estavam mortos, ambos eram fruto de má criações e psicose fundada na falha humana. Ela gostou, com muito medo, deu um sorriso e começou a correr para o banheiro. A água transbordara e a lama sujava a camisola e a calça, se beijaram e seus braços se entrelaçaram. Ela deitou e ele docemente foi cortando aquela alva pele que nunca tinha sido exposta ao sol, ela chorava e ria, declamava poemas demoníacos e pedia clemência por ser um verme, ele a amava mais e mais. Mas foi quando, por um instante, Clarice teve reminiscências de sua infância feliz com a mãe que amava, do piquenique e do lago quase limpo. Ela gritou, correu pelas escadas implorando trégua.
- Não pode haver, querida. Agora nosso sangue já se confunde naquele lençol que presencia nossos pecados, nosso amor frondoso de ira, de destruição! Sei que te ensinaram um caminho para a vida feliz e farta, mas não a mim. Não é justo que tenha a liberdade, que seja feliz com outro homem enquanto eu sucumbo em tristeza. Não vê meu amor passado? Teve a liberdade, está lá, recebendo a alegria do mau trato, da atenção pela discórdia, pela demência. Eu nem isso tenho, sou um esquecido, por Deus e pelo Demônio, sou filho da demência, mas até ela não me quer. E você é como eu, você é limpa só de pele, pois em teu sangue corre a mesma toxina que no meu, aquela que não me deixa compor para meu finado avô, pois ele me era amado. Vai morrer, finda seus dias ao meu lado, doce...
Que fúnebre visão: ambos escorados na porta de saída, gritando pela libertação, ninguém podia dar isso a eles. Ela beijou seus lábios e disse baixinho, enquanto ele cortava sua garganta: “Esta morte é mais dolorosa e glamourosa que a de minha vizinha, certo?!” ele concordou, ela sorrindo colocou sua mão sobre a dele, que segurava a lâmina, estava morta. Dizem que ele compôs dois dias seguidos a mais bela sinfonia, agora mundialmente aclamada, se chama: “Sr. Clarice” ,Sr. pelo avô e Clarice por ser seu amor, a sinfonia era igual a que escutara quando deitaram-se pela primeira vez. Depois teve uma morte súbita, é o que dizem, mas eu não acredito. Ele era bom demais até para a morte, e deve a ter enganado, destinando a sua o fim que desejava. Fiquei sabendo dos acontecimentos um pouco mais tarde por uma amiga. Eu estava passando uma temporada no interior de Minas, mas isso já é outra história...

Um comentário:

Anônimo disse...

Fernanda, querida!
Que bom saber que vc continua escrevendo, e cada vez melhor!!!
Beijos. Saudade.