domingo, 23 de novembro de 2008

É um gostar...


Eu gosto de você, e é um carinho que supera limites e barreiras. Alguém como você não pode ser esquecido porque os dias estão se passando, ou porque não temos mais o calor das risadas no fim das tardes. Mas é tão difícil entender que agora esse gostar é diferente? Ele não é menos sincero ou tenro do que era, só que diferente; agora é um gostar fraterno que nos podia fazer muito bem. E é o de mais precioso que eu posso dar às pessoas, meus sentimentos sinceros e esforços de uma concórdia mútua e digna de ser lembrada. Eu sei que, no início, isso seria difícil para você, os sentimentos são tão estranhos que se manifestam de maneiras diferentes em diferentes pessoas. Mas, eu acreditava que, em quanto estivéssemos ligados em coração, tudo poderia esperar, a dor cessaria e veríamos juntos a amizade primaveril.
[...]
E agora, olha! Está tudo desfacelado e você segue para um caminho tão destinto do meu, impedindo que eu o veja caminhar. Agora não estamos mais ligados, romperam os melhores grilhões, e todo nosso gostar, ao invés de transmutar, está findando na discórdia e inconsciência. Serei sincera, acho que a maior parte da culpa é sua. Mas, também é teu o maior fardo, de conviver com a discrepância sentimental dentro de um pobre coração. Eu sei, é como Drummond diz: “Não, meu coração não é maior que o mundo...” Mas me dói saber que o meu coração não foi capaz de absorver suas dores e converte-las em lindas rosas que iriam florir e decorar tua mesa, aonde se fartaria da vida. Esse era meu papel, e me pergunto: “Aonde deixei esta falha acontecer, qual brecha houve, por quê?” Não adianta explicar, seria inútil também.
[...]
Querido amigo, doce pessoa do meu mais sincero gostar; veja: ainda estou aqui, e estarei aqui sempre, esperando no mesmo lugar. Estou com a chaleira ao fogo e o pão no forno, com a mesa pronta e seus sapatos arrumados; a morada da amizade ainda pode nos unir. Nesta casa não há portas.

domingo, 16 de novembro de 2008

O Primeiro Beijo



Ambos estáticos. Os olhares se desviavam, não era proposital, um impulso nervoso para que a certeza não viesse, estavam parados frente ao sentimento mais sublime e subversivo existente. Ela se levantou num assalto, ele a seguiu, foi interceptado e voltou a sua cadeira. Ela olhou para a porta, olhou para ele, olhou para o chão. Também retornou ao seu lugar e suspirou afonicamente. Não é preciso descrever como tudo começou, afinal, quem nunca teve um romance, bem ou mal sucedido, fundamentado em carência ou na sublimação que é o verdadeiro Amor? Também é indiferente como eles eram, como são e como serão; são todos nós, são todos os eus cabíveis dentro de uma mesma dúvida: o que é amar?
Agora pairava em ambas mentes a dúvida: E agora? “Preciso falar-te, Melissa, eu quero que saiba...” Emudeceu, ele não sabia o que era necessário ser dito, Melissa o olhou e corou a face, ela sabia perfeitamente o que era.
Os pés dela começaram a esticar em direção as pernas de Henrique, faziam carinho e conferiam um ar mais amistoso ao ambiente. Ele, em contra partida, começou a assobiar baixa a música preferida da amada, era algo detestável e meloso; ela se emocionou como todos nós faríamos. E o dia foi mesclando com a noite, e o tempo passando e a calma vindo, eles poderiam esperar muito tempo ainda.
“Você vem comigo, Henrique? Para onde eu desejar, mesmo que seja um lugar onde não haja espaço para cautela e inseguranças? Você conseguirá se desprender de todos os seus medos em nome de algo maior e se lançar ao meu lado a tudo isso que vejo em teus olhos?” Ele a olhou, deu um sorriso singelo e acenou com a cabeça. Ela bebeu um copo de água e comeu algumas bolachas. Já era noite, ambos se levantaram e foram andando peripatéticamente pelo jardim, o frio já se fazia presente.
- Quanto tempo se passou, Mel? Desde que você chegou nessa casa, se sentou na cadeira e me outorgou uma decisão tão difícil, quanto tempo? Quanto tempo para destilar seu veneno, inebriante e letal, que me confere mais medo e insegurança que a noite gélida a qual presenciamos?
- Não muito, você é alguém previsível demais para eu gastar toda minha retórica, e já está morto do veneno que diz me fazer peçonhenta. Como chegamos a esse ponto, como nos amamos tanto, mas nos afastamos por um abismo imperceptível? Como eu venero tua morada, calculada nas dores alheias e anseios egoístas, como você ainda consegue me atrair?
-Simples: você é uma bela criatura, inebriante, como eu mesmo já disse, mas fraca em suas convicções. E, ao me encontrar, ancorou toda sua fraqueza, mesmo eu não sendo tudo o que você almeja para possuir. Eu só me pergunto, será isso amor? Anos e anos passei estudando a mente humana, e tentando explicar este sentimento, e você diz que o temos nos unindo, mesmo de maneira pouco saudável?!
Ela parou, cobriu o rosto para que não a visse chorar. O diálogo sério e carregado de elucubrações faz parecer mórbido, ficcionista e desumano. É que eles, diferente de nós, falavam o que realmente sentiam, sabendo que isso não seria atenuante na dor que os amantes incompreendidos sentem, amantes que partiriam para sentidos opostos antes do amanhecer.
-Eu te amo, com todas as forças que consigo reunir. Mas sei que não é um amor que motiva a seguir em frente, ao contrário, ele me priva de estar inteira, pois só ao teu lado reúno as minhas maiores, e piores, forças. Eu nunca pensei no Amor, sempre julgando apenas uma palavra obsoleta e desconexa, e agora me encontro com as mesmas dúvidas. Não é engraçado?! Você o estudou tanto, eu tão leiga, mas ambos suspensos pelo mistério do amor!
Ele chegou perto, enlaçou sua cintura com uma das mãos e com a outra fechou os olhos de Melissa. Aproximou-se do seu ouvido e sussurrou para que nem os morcegos ouvissem e participassem daquele momento solene, momento íntimo:
- Você quer glorificar porque não o conhece, mas eu, não só o estudei, mas fui vítima desse algoz desesperado. Diz a lenda, que quando nos machucam, as feridas ficam latentes e profundas, e só se fecham com novas e piores. Para isso, é preciso machucar o outro, outorgar a dor é compartilhar amor, é deixar viva a angústia de se estar vivo, é compartilhar o que tenho de mais intenso, minha loucura por amar todas as coisas. Eu te amo.
-Eu te amo, e não estou com medo de sofrer, eu te amo...
E então, seus lábios se encontraram e ambos choraram em soluços. Não era o primeiro beijo deles, mas parecia, assim encararam. E viveram aquele momento de êxtase com glória e vitória, era o beijo melhor dado e recebido, o primeiro, porque é o mais verdadeiro, limpo e liberto. Algo que esquecemos por querermos velar o sentimento alheio, quando as feridas transbordam e sufocam toda a verdade do beijo, a verdade do amor. Ela o abraçou, ele a rejeitou e entrou na casa. Melissa foi embora, de pés descalços. Nunca mais se viram, nunca mais souberam do que aconteceu; no fundo se sentiam arquétipos e queriam que fosse assim. Há uma Melissa dentro de mim, de você, que quer viver um amor sincero e ávido. E um Henrique, que quer o entender e faze-lo verdadeiro, eterno; quando eles se encontram? Talvez tenhamos de estar descalços de nós mesmos para encontrá-los.

sábado, 15 de novembro de 2008

Sim, eu acredito.


Há um lugar maior, que transpassa as nuvens e se iguala as estrelas. Há um lugar onde os Deuses brindam e zelam por seus filhos, há um lugar celeste inatingível de toda maldade. Eu não consigo o ver, mas contemplo toda sua imensidão inserida no Mistério que é sua existência; eu sei que ele existe. Pensar assim não é eximir a baixeza dos homens, nem relegar a inexistência dos bons. Pensar assim é acreditar na humanidade, acreditar que temos um laço com este lugar sutil, que vamos conhecer um dia, quando toda a humanidade o invadir como crianças leves e libertas.
Sim, eu acredito na Humanidade. Acredito nos bons homens, que em dias difíceis lutam por honra e justiça, acredito naqueles que me dão um sorriso mesmo estando submersos em problemas sérios. Acredito no que ri são, em quem luta com vigor e, mesmo perdendo, vence a si mesmo. Acredito nos homens que sabem o valor das flores.
Sim, eu acredito nas flores. Acredito na beleza e no poder da natureza, que transmuta o feio no belo, o vicioso no virtuoso. Acredito nas Leis Naturais, na complacência e compaixão dos pássaros e no encantamento das borboletas. Acredito nas plantas que, generosamente, nos dão a vida e nas colônias de fungos que cooperam entre si, um belo exemplo. Acredito neles, acredito, pois são parte do Universo.
Sim, eu acredito no Universo. Em sua grandeza, em seu mistério, eu seu poder. E acredito que as estrelas carreguem o que há de bom em mim, que o Sol me guie e a Lua me faça lembrar dos tempos passados. Acredito que o Zodíaco me faça recordar dos tempos míticos de outrora, e que a Via Láctea seja a magia derramada no mundo. Acredito que o Universo seja a plasmação de algo superior. De um lugar maior, que transpassa as nuvens e se iguala as estrelas. Hoje, eu olho para o céu, para essa noite ofuscada e sem estrelas, e sei que não estou só. E é por isso, só por isso, que me reconforto, quão grande é a liberdade de saber teu lugar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008


Hoje eu estou com medo. Medo desse sentimento que me invade, dessa transmutação em incertezas e inconstâncias. Eu estou com medo de mim, por não entender o que se passa dentro deste meu pobre coração, cansado de velar sensações e sentimentos que não sei lidar. Sei o quanto isso é piegas, e me envergonho de escrever; gostaria de erguer-me sem nem ao menos pensar em como estou fraca e febril por este medo. Medo de querer seguir uma direção que não é a certa, que me aponta para pessoas irrisórias e maldosas, que não irão me proteger, mas sim acompanhar meu desalento. Hoje eu não choro, meus olhos não se umedecem facilmente, mas em mim já não há carnaval; o brilho que há tanto se perdeu agora paira sobre essas palavras medrosas e covardes. Tenho medo por desejar algo que não é o que aspiro, mas sinto uma desnuda vontade de estar ao lado desse esfomeado agente, agente de medo e inalcançável felicidade. Tão vãs minhas palavras, que só me afastam do meu entento, sinto você partindo; se afastando e sua imagem ficando cada vez mais turva. Você nem olha para trás, não sou nem um passado, nada digno de lembrança. É como se andasse em uma chuva tórrida, eu peço tua proteção, sou a ti indiferente, como cada pingo que cai ao teu redor.


Hoje eu estou com medo. Medo de enfrentar meu problema e me fazer guerreira. Medo de fazer-me clara e dizer que é hora de honrar tudo que sonho, que acredito; já basta de medo. Se não sou forte o suficiente para romper com meus medos instantaneamente, que seja aos poucos, mas seja. Cansei de me ver esgueirando pelos cantos pela minha impotência, quando sou eu quem a gero, quem a alimento e fortifico dentro de mim. E isso dá forças para que me tirem meu alimento, meu suprimento vital, meu Ideal. Sem ele nada sou, nada enfrento e vislumbro. Os dias são cinzas e as bocas emudecem, já não palavras sãs para se dizer. E deixarei que o roubem? Não! Já basta, medo! Seus dias estão contados!


Hoje eu estou com medo. Medo de um futuro próximo que desmorona todas minhas certezas de destino, que me faz crer o quanto eu sou incapaz de traçar a minha vida e me faz cair em angústia. Até quando serei levada pelo ritmo inconstante desse mar, que me arrasta e traga como um doce na boca de uma criança travessa? Não sei se estou preparada para mudar tanto, amadurecer, crescer e me formar...não sei se posso ficar sem o amparo materno, sem a carência dos adolescentes e sua pretensão de sabedoria. Não sei se quero ser massacrada por um mundo velho e louco, eu realmente tenho medo.

domingo, 9 de novembro de 2008

Prazeres Amelísticos.


Outro dia, vagando desnorteada pelo Orkut, me deparei com a comunidade “Prazeres Amelie Poulan”, da qual eu mesma já fiz parte algumas vezes, mas hoje não mais. Alguns desses prazeres que ela nutria são até que ‘normais’, em vista que, para maioria dos meus amigos, isso é algo compartilhado; a mão no saco de sementes é um belo exemplo. Mas agora, pensando assim como quem nada quer, comecei a tentar pôr no papel quais são os meus prazeres recônditos. Alguns eu não fiz ainda, mas nutro um enorme vontade, outros faço questão de sempre pôr em prática. Aí vão:

1- Ficar enrolada em um cobertor e deitada abaixo da janela ao sol de meio dia.
2- Tomar café sem açúcar, o mínimo já me mata.
3- Quebrar pratos depois de um almoço em restaurantes ou com pessoas estranhas e dar a desculpa de eu ser grega. [esse é um dos que ainda não fiz]
4- Enganar a mim mesma para dormir demais e não ir à aula.
5- Cantar com escova de cabelo como microfone – é, até hoje faço isso.
6- Escutar conversa dos outros na rua.
7- Pegar chuva sem trovões - menos quando estou doente.
8- Viajar com a cabeça no vidro para ele ir batendo levemente.
9- Abrir os olhos quando estou beijando alguém e ver o rosto dela – é como tirar uma foto.
10- Jogar Campo Minado no computador.


Ah, vai... Amelie aprenderia comigo! Bom domingo e segunda-feira melhor ainda à todos!

sábado, 8 de novembro de 2008

Heitor e Clarice.


Desceu as escadas correndo, seu vestido enlameado na barra fazia tropeçar e o sangue escorria lentamente. Viu a porta entreaberta, ela parecia o trêmulo breu que traria a liberdade, quanto desejara sair daquela casa. Seus dias sombrios começaram quando adentrara aquela porta, na época bem pintada e destrancada, e nunca mais havia posto os pés para fora. É lacônico e insipiente começar uma história assim, contar de como sonhos foram minimizados e uma vida desfeita. Eu preferia saber dizer algo belo e sutil para fazer com que você, querido leitor, se sentisse atraído pelo tom lúdico da história. Mas é falso. A verdade é que desde o início não se passa de um conto de como uma menina, angustiada por ver seus sonhos se esvaindo, perdeu a vida e a felicidade, tornou-se transeunte de si mesma. Quando Clarice saiu de casa, com sua pequena mala e o casaco enrolado na cintura, não imaginava que o que chamava tantas e tantas vezes de inferno era apenas o purgatório. Brigas familiares eram comuns, e para quem não são?, mas o que se passava na cabeça dela era uma forma de fugir, de se esvair, planejava agüentar todos os perigos externos por um momento de paz consigo mesma. Na verdade, não culpemos a família de nada... Era sua vontade de encontrar um caminho, algo para servir e por toda aquela energia que transbordava de seu pálido seio túrgido.
Logo no início do verão o conheceu, seu nome era Heitor e tinha dos sorrisos mais belos e gentis já vistos. Trabalhava em um escritório de contabilidade, mas sua verdadeira vocação era a música. Criado no conservatório pelo avô, que era zelador do local, aprendeu desde rebento o amor pelos instrumentos, mas em especial piano, do qual dedicava todas suas horas ociosas, abdicando até de comer e dormir algumas horas a mais. Eles se conheceram em um concerto no Municipal; ela vestia uma túnica branca, ele um terno discreto que demonstrava a corrente de seu arcaico relógio, prazeres escondidos. Trocaram olhares discretos e na saída começou uma tórrida, e corriqueira, chuva. Ela se apoiou nas escadas, os relâmpagos lhe causavam tonteiras, ele a amparou e soprou-lhe o rosto afastando seus cabelos. Ficaram parados se olhando, se vissem a cena entenderiam como é difícil descrever. Ele a amou como nunca naquele momento, sua blusa delicadamente abriu para que lhe entrasse ar, pode-se ver o colo e o pescoço, pareciam nuvens simétricas.
Começaram a sair, os dias foram passando, mas só conversavam, se olhavam e enredavam seus pés, sem nem ao menos trocarem beijos ou juras. Um dia ele a chamou para ir passar o fim de semana em sua casa, ela feliz fez uma pequena mala e enlaçou o moletom na cintura estreita, ela foi. Quando Heitor tinha apenas vinte anos seu avô teve morte súbita, no chão da cozinha. O recém homem sentiu-se menino, chorou horas seguidas, tentou suicídio mais algumas e passou as restantes tocando uma mesma sinfonia. Cresceu sem amigos, seu avô era seu modelo e herói, talvez por isso tenha se tornado um homem tão exemplar e disciplinado. Os dois moravam em uma pequena casa que se localizava em um sítio distante do centro, com papoulas, plantações, vinhos caros e cozinha de azulejo. Clarice sempre sonhou com isso, com o refugio do campo, com o contraste da louca cidade, em busca de encontrar-se com todos seus sentimentos perdidos no meio de crises e negligências pessoais. Não teve duvidas de que com ele ela seria feliz, plena, uma mulher do campo a se dedicar ao seu amor música, elegante e rústico.
Ao chegarem, ela subiu para o quarto principal carregada por ele, que docemente a deitou em seu leito e despiu os pés da doce mulher que já ofegante beijava-lhe as mãos. Uma música começou a tocar na cabeça de Heitor, parecia a sinfonia que ele sempre tentara compor, mas nunca conseguira, agora plasmavasse. Com o movimento uniforme de seus corpos, as palavras em sussurros e as balbucias entre juras: ele alcançara seu êxtase, ela seu amor. Ficaram se olhando sem dizer nada o dia todo, por dias. Ela deixava escapar risos escandalosos, ele espalmava seu corpo com monótona avidez, era o inicio da ruína de ambos. Depois de alguns meses, ele parou de trabalhar. Era sofrível demais ir para um cubículo enquanto sua amada deleitavasse com a beleza do mundo, oferecida em uma natureza de pincel. Ela concordou alegre com a idéia de não se trabalhar, viveriam do amor que tinham, das papoulas, dos vinhos, do êxtase que era ver a porta da casa descascando, da ânsia que era escutar todas as melodias deitada no piano de cauda.
Mas então os anos vieram, o inverno chegou e uma saudade crescente dos metrôs e da chuva entupindo bueiros começou a deixar Clarice descontente. O afeto já não era tão verdadeiro, o vinho acabara e as melodias se tornaram entediantes – nem preciso comentar sobre o êxtase de ver a porta descascando. Tomou fôlego em um dia quente, saltou da cama e desceu as escadas. Vestia uma bela camisola pérola e tinha os pés descalços. Seus cabelos eram claros, mel ou beges, nem sei. Seu sorriso sempre foi triste, suas mãos finas e o olhar de pena, de quem pede pena. Disse que queria ir-se, que cansara da vida, que ele não tinha ambições e que ela ainda tinha sonhos. Ele riu, riu tão desconcertadamente que deu medo. Parecia o riso quando viu seu avô estirado, segui de um choro digno de medo, medo do que um homem que chora tão descontroladamente pode fazer quando ele cessa. Ele parou, a olhou. Fitou o bico de seu seio que estava a mostra e fez vir em sua mente todos os momentos de felicidade, gemeu pensando em cada delírio de libido e tremeu ao constatar o calafrio que só apaixonados sentem. Correu para a porta, quebrou-lhe a fechadura, gritou duas frases desconexas e mandou-a sentar.
Heitor começou a querer dizer coisas, mas sua mente não estava suficientemente clara para isso. Ele queria explicar como era apegado às coisas, tanto matérias quanto subjetivas, e não podia abdicar delas sem que antes lutasse. Dizia que seus pais há muito o abandonaram, na verdade nunca o quiseram, mas o sustentavam como um fardo. Até um dia que, na escolinha pitoresca, o pequenino Hector juntou as tesourinhas de todos os coleguinhas e perfurou toda a perna da professora, ela negava o suco de uva a ele todas as tardes. Era o pretexto perfeito para o abandono, e ao seu pobre avô ficara relegado. Não que este fosse um homem ruim, tinha coração maior que o mundo, mas não sabia nada da arte de educar. Depois de algumas situações no primário, o patriarca resolveu tirar-lhe da convivência de outras crianças e a ele foi negada a educação. Já nos seus dezessete anos teve uma namorada. Ela freqüentava um grupo de reabilitação perto do mercado de frutas, ele começou a traficar ópio para ela. Logo estavam inebriados por uma tortuosa paixão que lhe levava ao céu e inferno em segundos, era um pêndulo. Como ele nunca usara nenhum tipo de drogas, era difícil agüentar o ritmo inconstante de Miucha - assim se chamava a louca, e só agüentava a situação por amor e um pouco de dó. Mas os pais da jovem, ao saberem todo o romancete, proibiram de vê-lo e instauraram o caos na vida do rapaz que desde então nunca convivera com ninguém. Não houve duvidas, em nome do amor, Heitor esperou cuidadosamente sua amada sair e incendiou a casa com os pais juntos, julgava te-la para sempre. O resultado foi estrondoso, Miucha queimou o rosto em loucura e a família resolveu interna-la em um manicômio no interior de Minas. Depois disso veio a morte de seu avô, a do vizinho e da senhora do leite, todas de causa natural, para todos, ele tentara montar uma sinfonia em agradecimento, só para o principal não conseguira. Até hoje há dúvidas de porque tudo isso foi contado naquele instante, acho que ele queria que ela soubesse por que todos aqueles fatos iriam suceder, afinal, ele a amava.
Ela, em meio a soluços, contou que sua vida era mais simples, porém mais angustiada, talvez... Viveu em uma família patriarcal, de comerciantes que enjaulavam suas pequenas filhas para não conviverem com a atroz realidade. Um dia, quando ela ainda era criança, estava debruçada na janela cantando quando viu a vizinha, cinco anos mais velha, se jogar e cair nos fincos do jardim. Desde então tentara reproduzir morte semelhante em glamour, pois pela primeira vez uma menina naquele bairro era assunto, e não por seus sapatos ou pelo feito de seus pais. Mas ela se dizia fraca, impotente em sua sandice, jamais faria isso. Nunca tivera nenhum namorado, transara com três homens, ambos trinta anos mais velhos, e caiu em depressão por cinco vezes. Quanto a Heitor, o conheceu de forma despretensiosa, e explicava que queria amá-lo, mas que isso seria algo falso, algo errado, porque desejou estar naquela casa em cada momento que estivera. Ele mandou calar, sentou-se no piano e mandou que ela enchesse a banheira, tomariam um último banho juntos e a deixaria ir.
Quando ela desceu para avisar que o banho estava pronto, Heitor estava todo mutilado nos membros e grunhia por seu amor, quebrara os móveis e agarrando sua mão falava para ficar. Ambos já estavam mortos, ambos eram fruto de má criações e psicose fundada na falha humana. Ela gostou, com muito medo, deu um sorriso e começou a correr para o banheiro. A água transbordara e a lama sujava a camisola e a calça, se beijaram e seus braços se entrelaçaram. Ela deitou e ele docemente foi cortando aquela alva pele que nunca tinha sido exposta ao sol, ela chorava e ria, declamava poemas demoníacos e pedia clemência por ser um verme, ele a amava mais e mais. Mas foi quando, por um instante, Clarice teve reminiscências de sua infância feliz com a mãe que amava, do piquenique e do lago quase limpo. Ela gritou, correu pelas escadas implorando trégua.
- Não pode haver, querida. Agora nosso sangue já se confunde naquele lençol que presencia nossos pecados, nosso amor frondoso de ira, de destruição! Sei que te ensinaram um caminho para a vida feliz e farta, mas não a mim. Não é justo que tenha a liberdade, que seja feliz com outro homem enquanto eu sucumbo em tristeza. Não vê meu amor passado? Teve a liberdade, está lá, recebendo a alegria do mau trato, da atenção pela discórdia, pela demência. Eu nem isso tenho, sou um esquecido, por Deus e pelo Demônio, sou filho da demência, mas até ela não me quer. E você é como eu, você é limpa só de pele, pois em teu sangue corre a mesma toxina que no meu, aquela que não me deixa compor para meu finado avô, pois ele me era amado. Vai morrer, finda seus dias ao meu lado, doce...
Que fúnebre visão: ambos escorados na porta de saída, gritando pela libertação, ninguém podia dar isso a eles. Ela beijou seus lábios e disse baixinho, enquanto ele cortava sua garganta: “Esta morte é mais dolorosa e glamourosa que a de minha vizinha, certo?!” ele concordou, ela sorrindo colocou sua mão sobre a dele, que segurava a lâmina, estava morta. Dizem que ele compôs dois dias seguidos a mais bela sinfonia, agora mundialmente aclamada, se chama: “Sr. Clarice” ,Sr. pelo avô e Clarice por ser seu amor, a sinfonia era igual a que escutara quando deitaram-se pela primeira vez. Depois teve uma morte súbita, é o que dizem, mas eu não acredito. Ele era bom demais até para a morte, e deve a ter enganado, destinando a sua o fim que desejava. Fiquei sabendo dos acontecimentos um pouco mais tarde por uma amiga. Eu estava passando uma temporada no interior de Minas, mas isso já é outra história...

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Medo na aula de literatura...


Diz minha professora de literatura, a inteligente Andréia, que temos que escrever todos os dias, se gostamos da coisa e queremos saber faze-la. Isso me deu uma tristeza infinita, porque eu gosto, mas não faço isso. Não sei escrever direito, oras... E, quando escrevo, são sobre temas aleatórios, casuais e meramente dispensáveis. Eu poderia sim escrever todos os dias, mas aí surgem os problemas. O primeiro é tempo, não que eu não o tenha, mas é que eu não sei administra-lo. Amanhã, por exemplo, tenho uma difícil prova e estou aqui, escrevendo baboseiras sem importância ao invés de me debruçar sobre contar e equações. O segundo é o assunto, a minha vida não é o que chamamos de animada. Eu quase não saio. Não tenho conversas super interessantes e viagens glamourosas para contar, meu conhecimento político é limitado e as opiniões distorcidas e volúveis - ou seja, prefiro me calar a dizer besteira. Também não gosto de explorar meus sentimentos baixos. Hoje eu senti muito medo, por exemplo. Por uma coisa pequena, uma mera chuva, e estou até agora com sentimento de medo – do mundo, da vida, de mim e dos outros.
Ultimamente tenho ficado um pouco pé atrás com os outros, insegura de mim mesma e relegando para o canto sentimentos que sei que irão me machucar posteriormente. Enfim, eu poderia estar usando isso para escrever e ficar mais treinada na arte da escrita, mas seria tão vil da minha parte. No que isso melhoraria a vida das pessoas? Fato! As coisas que escrevo não melhoram nem a minha, pobre de mim. Mas eu gosto delas, demonstram o quanto ainda tenho que fazer, trilhar, ralar! Eu queria ter levantado o dedo e dito: “Andréia, isso quer dizer que nunca escreverei bem?”, queria muito saber se sempre serei uma sub-escritora, se é melhor desistir agora e ir tentar outra coisa... Tive medo da resposta dela.